03/02/2014 – O manual da propina da Alstom
Veja
Documento da empresa investigada no Brasil por envolvimento no cartel dos trens ensina o caminho para subornar responsáveis por licitações
A empresa francesa Alstom é, ao lado da alemã Siemens, o principal alvo de investigações sobre pagamento de propina para a obtenção de contratos nos sistemas de transportes sobre trilhos dos governos federal, de São Paulo e do Distrito Federal. Há ramificações da apuração na França e na Suíça. No caso da Alstom, se ainda havia dúvidas se a corrupção era uma ação isolada de funcionários ou prática institucional da empresa, agora não há mais. Um documento de três páginas, obtido por VEJA, explica aos dirigentes envolvidos em contratos com governos como se deve pagar propina para vencer licitações. O documento foi produzido por um executivo da Alstom em 1997 e anexado a um processo na França pelo ex-diretor comercial da empresa André Botto.
O manual da propina da Alstom é dividido em cinco itens e utiliza eufemismos para justificar sua existência — como o que diz que o “”objetivo (do documento) é definir modalidades práticas de pagamento de comissões a terceiros”. Logo no início, há uma recomendação para evitar que o esquema seja descoberto: é necessário “manter a confidencialidade indispensável a esse tipo de operação”. O guia recomenda ainda que os envolvidos não deixem rastros da propina nos registros fiscais da empresa. Assim, subornos viram pagamentos de “comissão”, cujos valores têm de ser devidamente registrados em contratos de “consultoria e suporte”. Esses contratos, reza o documento, necessitam ter um texto-padrão e ser assinados pelo diretor financeiro da companhia. As subsidiárias da Alstom, como a Cegelec, também eram orientadas a seguir o guia prático de corrupção da empresa.
As recomendações foram seguidas à risca mundo afora, inclusive no Brasil. Em março de 1998, um ano após o manual ter sido escrito, a Cegelec venceu uma licitação de 13,4 milhões de dólares para fornecimento de sistemas de telecomunicações à estatal federal Fumas. Outros documentos obtidos por VEJA mostram que, naquele ano, a companhia francesa fez ao menos um depósito no valor de 121406 dólares na conta da MCA Uruguay, offshore registrada nas Ilhas Virgens Britânicas em nome do lobista Romeu Pinto Junior. O depósito, conforme documento que o acompanhava, seria referente a pagamento por “consultoria e serviços de suporte local no projeto de telecomunicações de Furnas” e estava assinado por um diretor da Alstom no Brasil — tudo conforme o manual.
Pinto Junior, segundo apurou o Ministério Público de São Paulo, era o responsável por distribuir a políticos e burocratas o dinheiro da propina paga pela Alstom no Brasil. Ele próprio admitiu aos investigadores que fazia tal serviço. Sua memória, no entanto, termina aí — Pinto Junior diz que não recorda quem eram as pessoas às quais ele entregava o dinheiro.
A Polícia Federal investiga dois braços desse esquema de corrupção: no setor de transporte ferroviário e no de energia. Até agora, dezessete funcionários públicos e das empresas foram indiciados. A parte do inquérito referente ao cartel do trem está nas mãos do ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello.
Depois de receber o caso da Procuradoria-Geral da República, em dezembro. Mello disse que iria analisá-lo ainda durante o recesso da Justiça, que acaba nesta semana. Caso o STF acolha a denúncia, o processo será desmembrado: os indiciados com direito a foro privilegiado responderão no Supremo, enquanto os demais voltarão à primeira instância. Quatro citados têm direito a foro privilegiado: os secretários estaduais Edson Aparecido (PSDB), José Anibal (PSDB) e Rodrigo Garcia (DEM) e o deputado Arnaldo Jardim (PPS). Todos até agora negaram envolvimento com o esquema da Alstom.
No manual dos investigadores, a primeira coisa que se aprende é que a corrupção tem dois lados, o de quem paga e o de quem recebe. O guia da propina da Alstom resolve parte da questão. Agora, falta a outra metade.