12/11/2012 – Prefeitura se curva à Fifa
O Estado de S. Paulo
Durante a Copa do Mundo, entre 12 de junho e 13 de julho de 2014, a Prefeitura de São Paulo abdicará de parte de sua autoridade sobre a cidade em favor da Fifa. É o que se depreende do contrato que o prefeito Gilberto Kassab assinou em setembro de 2011 com a entidade que governa o futebol mundial, para definir as obrigações de São Paulo como uma das sedes da competição. O acordo só foi divulgado no dia 6.
O documento foi tornado público por recomendação do Ministério Público Federal, interessado na observância do princípio constitucional da ampla publicidade de contratos firmados por entes públicos. Uma das cláusulas, a 33, prevê justamente que as partes tudo fizessem para manter seu conteúdo sob sigilo. “No bojo do contrato não há nenhuma situação a justificar possível ressalva decorrente de sigilo imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”, disse o procurador José Roberto Pimenta, do grupo do Ministério Público que acompanha o uso das verbas federais na Copa.
O cuidado em não divulgar o conteúdo do documento parece se justificar quando se observa o tamanho das concessões que São Paulo se viu obrigada a fazer. A cláusula 22 prevê, por exemplo, que durante a competição a Prefeitura deverá, se a Fifa julgar necessário, “fechar o acesso público a qualquer via dentro da cidade-sede”. Ou seja: a mobilidade urbana, cuja responsabilidade é do poder público e afeta o cotidiano de toda a metrópole, poderá ser alterada ao bel-prazer de uma entidade privada – ainda que a Fifa diga que só fará tal pedido quando considerá-lo “razoável”. Outra lei que será transformada em letra morta durante a Copa será a Cidade Limpa. A cláusula 15 determina que “as principais localidades por toda a cidade-sede (…) deverão apresentar decorações que incorporem as marcas da competição”. O item manda ainda que São Paulo torne disponíveis os espaços para essa publicidade, citando especificamente “postes de luz, faixas, outdoors, fachadas de edifícios, pontes e meios de transporte público”.
O contrato prevê também, na cláusula 30, que São Paulo, em dias de jogos, não poderá receber nenhum outro evento cultural que atraia “grande número de pessoas”, salvo os patrocinados pela Fifa – o que arbitrariamente limita a vida cultural da cidade. Além disso, a Fifa exige que a Prefeitura dê permissão para que bares funcionem “até tarde da noite” em dias de jogos, o que pode contrariar a Lei 12.879, segundo a qual esses estabelecimentos não podem ficar abertos após a 1 hora. Há ainda, na cláusula 32, a exigência absurda de que a Prefeitura não conceda autorização “para nenhum trabalho de construção privado ou público” no período da Copa, e “qualquer construção que esteja em progresso no início da competição deverá ser temporariamente suspensa”.
A Fifa pede, na cláusula 18, que a Prefeitura providencie ao comitê organizador um escritório com todos os equipamentos e produtos necessários para seu funcionamento – e o poder público deve “usar de esforços razoáveis” para comprar esse material de empresas patrocinadoras da Fifa. Ou seja: a Prefeitura deve ignorar a Lei de Licitações e favorecer determinados fornecedores.
O contrato assinado por São Paulo é o mesmo que foi firmado pelas demais cidades-sede, o que significa que a ingerência da Fifa é nacional. Tal compromisso está no contexto do pacote de concessões que o governo federal ofereceu para trazer a Copa e a Olimpíada de 2016 – incluindo visto de entrada no País irrestrito a clientes da Fifa, fim da obrigatoriedade de mandado judicial para apreender produtos suspeitos de pirataria e permissão para que o organizador de grandes competições esportivas privadas conceda benefícios fiscais, uma atribuição exclusiva da Receita Federal.
Não se discute a importância que a Copa do Mundo tem como evento mobilizador de paixões e multiplicador de ganhos econômicos, e é claro que as cidades-sede são privilegiadas por abrigar seus jogos. Mas isso não pode ser argumento para que o poder público renuncie às suas obrigações e, no limite, contrarie a lei.