A Covid-19 e a inovação das contratações de urgência no Brasil
Felipe Boselli[1]
Lucas Hellmann[2]
Isadora de Fragas[3]
Desde o início do enfrentamento à disseminação da COVID-19 no Brasil, tem-se observado uma verdadeira avalanche de instruções normativas, portarias, decretos, medidas provisórias e leis, editadas por todas as esferas, que tentam ordenar as ações para o contingenciamento do vírus ou adaptar o aparato estatal a um cenário para o qual nosso ordenamento jurídico não estava preparado.
Nesse emaranhando de normas, uma das mais significativas é a Lei Federal nº 13.979/2020, de 06 de fevereiro do presente ano, que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019” e suas alterações trazidas pelas Medidas Provisórias de nº 926, 927 e 928, editadas pela Presidência da República em 20, 22 e 23 de março de 2020, respectivamente.
A Medida Provisória nº 926/2020 traz expressivas inovações no tocante aos processos de contratações públicas que se fizerem necessários para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus, com hipótese expressa de dispensa de licitação nestes casos e a possibilidade de afastamento de diversas exigências, como os estudos preliminares, o gerenciamento de riscos e estimativa de preços, além da exigência de um termo de referência simplificado.
A MPV 926/2020 também permite o afastamento da exigência da regularidade fiscal e trabalhista, de outros documentos de habilitação e até a possibilidade de contratar com empresas inidôneas, em situações excepcionais. Vale lembrar, ainda, que além da MPV 926/2020, tivemos a Circular nº 893 da Caixa Econômica Federal, que suspende a exigibilidade do FGTS nas competências de março a maio, e a Portaria Conjunta nº 555/2020, que prorroga a validade da Certidão Federal e, portanto, também do INSS, por 90 dias, a partir de 23 de março de 2020.
Outra inovação apresentada pela MPV nº 926/2020 é a possibilidade de realização de licitações na modalidade pregão, eletrônico ou presencial, também para o combate à COVID-19, com todos os prazos reduzidos pela metade, conforme redação dada ao artigo 4º-G da Lei nº 13.979/2020, além do afastamento da audiência pública para as aquisições acima de R$ 150.000.000,00, de acordo com o parágrafo 3º do mesmo artigo, já estando o Portal de Compras Governamentais do Governo Federal adaptado para as novas disposições da Lei nº 13.979/2020.
Assim eram e ficaram os prazos do pregão:
Etapa | Lei 10.520/02 e Decr. 10.024/19 | Lei 13.979/20 |
Publicação | 8 dias úteis | 4 dias úteis |
Impugnação / esclarecimentos | 3 dias úteis | 1 dia útil |
Resposta à impugnação / esclarecimentos | 2 dias úteis | 1 dia útil |
Data da sessão pública | 1 dia útil | 1 dia útil |
Recursos | 3 dias úteis | 1 dia útil |
Contrarrazões | 3 dias úteis | 1 dia útil |
Resposta a recursos, adjudicação e homologação | 5 dias úteis | 2 dias úteis |
Assinatura de contrato | 5 dias úteis (não está na lei, prazo mais usual) | 2 dias úteis (redução lógica) |
Prazo total | 27 dias úteis | 11 dias úteis |
Na contagem dos prazos totais, não são considerados os prazos de impugnação, esclarecimento e de respostas a esses pedidos, visto que esses prazos devem ocorrer dentro do prazo de publicação de oito ou quatro dias úteis.
Ponto relevante dessa redução e que a norma não tratou com especificidade é que o prazo de impugnação foi reduzido para 1 dia útil, o que significa que o licitante terá até o dia anterior à licitação, às 23h59 para impugnar o edital. Caso a licitação se dê pela manhã, a Administração terá poucas horas, talvez minutos para julgar a impugnação.
Ainda que seja juridicamente possível fazer uma licitação sem responder a impugnação, esse cenário gera, na prática problemas quase que insolúveis, muitas vezes mais problemáticos até que a suspensão da licitação. Neste sentido, passa a ser uma boa prática fazer essas licitações no período da tarde, para que o órgão tenha, no mínimo, o período da manhã do dia da licitação, para analisar e julgar as impugnações que forem porventura apresentadas.
De toda sorte, voltando à redução dos prazos, quando o Poder Público tem poucos dias para implementar uma solução que pode salvar vidas, percebe-se a expressividade e a importância da diminuição dos prazos mencionados.
Essa celeridade de procedimentos, embora nunca tenha sido adotada pelo Brasil, não é original. Isso porque, é possível encontrar em outros ordenamentos institutos bastante semelhantes ao estabelecido pelo artigo 4º-G da Lei nº 13.979/2020, a exemplo das normas de contratação de Portugal e, principalmente, da Espanha.
De modo similar às contratações públicas no Brasil, o Código de Contratos Públicos de Portugal, bem como Ley de Contratos del Sector Público, da Espanha, também preveem a contratação direta por dispensa em casos de emergência.
No entanto, os dois sistemas se distanciam do brasileiro na medida em que estabelecem uma estrutura binomial de contratações emergenciais – além da dispensa de licitação, Portugal e Espanha também instituíram uma segunda forma de contratação, que, no primeiro encontra o nome de “concurso público urgente” e, no segundo, “tramitación urgente del expediente”, nos quais todos os prazos da licitação são reduzidos pela metade e o processo recebe um regime prioritário para as tramitações internas do órgão.
O modelo de tramitación urgente del expediente espanhol é ainda mais próximo do novo modelo brasileiro adotado pela Lei nº 13.979/2020 comparado ao processo português, haja vista que, diferentemente de Portugal, que excluiu diversas etapas do processo licitatório, como as impugnações ao edital e a negociação de preços, a Espanha limitou-se a reduzir os prazos para acelerar o procedimento.
O modelo binomial adotado pela Espanha e por Portugal, com a dispensa de licitação por emergência e a contratação de urgência, nos parece um avanço positivo em termos de contratação emergencial, e que pode ser adotado no Brasil não só para o enfrentamento da pandemia causada pelo novo coronavírus.
Este avanço, foi, inclusive, objeto de análise em nossa tese doutoral defendida em fevereiro de 2020, quando sustentamos a importação desse instituto.
Tal modelo permitiria diferenciar o que é uma situação de urgência, na qual o gestor público precisaria de uma solução mais rápida que a habitual, e uma emergência, em que a solução deva ser imediata.
Isso resultaria em uma significativa redução no nú mero de contratações diretas, algo que, no Brasil, não deve ser ignorado – hoje, a exceção virou regra, e as dispensas de licitação representam 61,53% do volume de compras feitas pelo Governo Federal, segundo dados de 2019 do Painel de Compras.
Certamente, a adoção do modelo de contratação de urgência no Brasil deve ser feita de forma planejada e coordenada, com a classificação clara das hipóteses do seu cabimento, de modo que não acabe por levar a um excesso de contratações feitas “à toque de caixa”, obstando um controle efetivo dos gastos públicos.
Instituída da forma correta, a contratação de urgência poderia se tornar uma importante ferramenta aos gestores que, hoje, diante de uma situação que demanda uma solução mais célere (mas não imediata), precisam se socorrer à dispensa de licitação, independentemente do grau de urgência/emergência.
Por fim, em relação ao modelo de contratação urgente aplicado pelo artigo 4º-G da Lei nº 13.979/2020, cumpre-nos fazer dois alertas.
O primeiro deles é para os licitantes que vierem a participar dos processos realizados com base na nova legislação: atente-se aos novos prazos que se tornaram significativamente mais curtos em comparação com aqueles até então enfrentados, a exemplo do prazo para recursos, cujas razões devem ser apresentadas em 1 dia.
O segundo é para os gestores que vierem a se deparar com situações que demandem a aplicação da Lei nº 13.979/2020 para o enfrentamento da COVID-19. A adoção do modelo de contratação urgente deve, assim como a modalidade de dispensa de licitação, ser devidamente justificada, por se tratarem de processos mais restritivos e menos transparentes. Não é demais recordar que todo ato administrativo que importe no afastamento de uma ampla participação de competidores e que possa alijar uma detida análise pelos órgãos de controle e pela sociedade civil deve encontrar justificação, sob pena de responsabilidade.
[1] Doutor em Direito do Estado. Advogado, professor e Conselheiro da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento – CASAN. Diretor de Direito Público da Escola Superior de Advocacia – ESA-OAB/SC e Secretário-Geral do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina – IDASC
[2] Acadêmico do curso de direito da UFSC.
[3] Acadêmica do curso de direito da UFSC